Boletín da Real Academia Galega

Núm. 385, pp. 231-239

© 2024. Real Academia Galega

https://doi.org/10.32766/brag.385.885

NÉLIDA PIÑON, A ESCULTORA DAS PALAVRAS

NÉLIDA PIÑON, THE SCULPTRESS OF WORDS

Antonio Maura Barandiarán
Academia Brasileira de Letras

Resumo: Dentro do extraordinário elenco de escritoras que se destacaram na literatura brasileira, a figura de Nélida Piñon brilha pela versatilidade e profundidade de suas abordagens narrativas. Obras como A República dos Sonhos são marcos no romance brasileiro do século XX e, aliás, é um hino à emigração galega no Brasil. São lembradas esta e outras obras da autora brasileira, bem como sua biblioteca pessoal que foi doada ao Instituto Cervantes em 2011.

Abstract: Among the extraordinary list of writers who stand out in Brazilian literature, the figure of Nélida Piñon is notable for the versatility and depth of her approach to narrative. Works such as A República dos Sonhos [The Republic of Dreams] are landmarks in the 20th-century Brazilian novel and, in fact, a hymn to Galician emigration to Brazil. This and other works by the Brazilian author are discussed, as well as her personal library, which was donated to the Instituto Cervantes in 2011.

Palabras chave: A República dos Sonhos, biblioteca Nélida Piñon, Galiza.

Key words: The Republic of Dreams, Nélida Piñon library, Galicia.

Nélida é uma das grandes damas da literatura brasileira, uma das representantes dessa infinidade de escritoras que nasceram na primeira metade do século XX e sem as quais seria impossível compreender o que aconteceu na literatura dessa grande nação de língua portuguesa ao longo do século passado e início deste. A primeira a nascer desse grupo excepcional de autoras seria Rachel de Queiroz em 1910, depois viria Lygia Fagundes Telles em 1918, mais tarde Clarice Lispector em 1920 e, trás elas, viria a segunda geração com Hilda Hilst em 1930, Marly de Oliveira em 1935, Nélida em 1937, Lya Luft um ano depois, Ana María Machado em 1941 e, em 1946, nasceu Conceição Evaristo, a grande voz da feminidade negra do Brasil.

É, sem dúvida, uma, duas ou três gerações de escritoras magníficas que, com exceção de Marly, que se destacou como uma poeta extraordinária, exploraram o terreno da narrativa, tanto do conto como do romance. Rachel seguiu o caminho do regionalismo nordestino e Lygia o da história íntima, em contos e romances, assim como fez Clarice. Hilda, por sua vez, escreverá pequenas histórias e romances com forte conteúdo sexual, às vezes beirando a pornografia. Lya Luft, de origem alemã, foi cronista e autora de contos e romances onde explora o quotidiano com extraordinária versatilidade e lucidez. Ana María Machado, além de autora de livros infantis, criou grandes relatos que exploram a história brasileira do século XIX e do século XX com narrativas que combinam sensualidade, o compromisso político e uma percepção aguçada dos sentimentos humanos. Conceição Evaristo com livros de contos como lhos d’água (2014) e romances como anção para Ninar Menino Grande (2022) planeja o gravíssimo e premente assunto da cultura da negritude no Brasil.

Por enquanto, será Nélida quem escreverá não só magníficas histórias, mas gerará a grande obra épica, que poucos produziram no âmbito do romance latino-americano do século passado. Devemos lembrar Cem Anos de Solidão, Terra Nostra ou O Século das Luzes para citar apenas três grandes obras escritas em língua espanhola e, já em língua portuguesa do Brasil: Grande Sertão: Veredas, Viva o Povo Brasileiro ou A Pedra do Reino. Pois bem, esta lista seria muito limitada se não mencionasse A República dos Sonhos, de Nélida. Esta é a história que não foi contada pelos italianos ou pelos japoneses e libaneses que emigraram para o Brasil e, se o fizeram, foi de forma casual, pelas suas consequências, ou marginalmente, pelos seus possíveis efeitos. Célia Gatai, escritora e mulher de Jorge Amado, contou algo sobre a sua infância italiana, em Anarquistas Graças a Deus. Luiz Rufatto, anos depois, também fez eco dessa emigração com obras como Eles saõ Muitos Cavalos, ou a série Inferno Provisório. Raduan Nassar e Milton Hatoum falaram sobre a herança libanesa em romances como Lavor Arcaica ou Relato de um Certo Oriente. Mas a grande obra que vai contar, e cantar de forma épica, a emigração que deu universalidade ao Brasil, é justamente A República dos Sonhos.

Certamente a primeira colonização do Brasil foi feita pelos portugueses e pelos negros escravizados, que agora começam a escrever a sua história, silenciada durante séculos. Mas estas duas primeiras emigrações, da colonização juntamente com a escravatura, não poderiam dar uma imagem realista do país sem os diferentes êxodos do final do século XIX e início do século XX, quando japoneses, italianos e muitos espanhóis chegaram para substituir a força de trabalho escravizada. Um pouco mais tarde houve a chegada de numerosos galegos, que criaram grandes colónias e grupos sociais. É a esta última emigração que Nélida dedicará a mais significativa das suas obras. A Républica dos Sonhos é, portanto, um romance simbólico que explica o que significou para o Brasil a chegada daquele fluxo de gente que serviu para construir o país e dar-lhe a fisionomia plural que hoje tem.

Desculpem este preâmbulo talvez um tanto extenso, mas queria registrar a importância de Nélida na história da literatura brasileira e ibérica. A voz desta escritora carioca, tão galega como brasileira, se caracterizou pela sua grandeza, como digo épica, mas também pela sua sensibilidade feminina, pela sua sensualidade, pelo seu olfato apurado na hora de descrever os sentimentos humanos e pela grandeza de sua palavra. Nélida é uma escritora que ancora seus textos em palavras expressivas e sonoras que, como talismãs, deixam um selo misterioso em cada uma de suas frases.

Talvez seja interessante mergulhar nos seus livros mais significativos, como se fossem cidades submersas, para descobrir a sua mensagem: aquele milagre que a sua obra representa. Nos seus primeiros romances —Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, Madeira feita Cruz e Fundador— investiga a religiosidade e a poética medieval, como fica evidente no último dos citados, que trata de uma missão: a construção de uma cidade. Este empreendimento, tanto religioso como militar, envolve a delimitação de um território e de uma memória com inúmeras alusões históricas e lendárias. Em Fundador está, talvez, a origem daquele ideal mítico e, ao mesmo tempo, místico, que caracterizará o pano de fundo da obra narrativa da escritora de origem galega.

Em 1972 publicou A Casa da Paixão. Esta obra é, nas palavras da própria Nélida, a erotização do verbo (Maura 1995, p. 70). As personagens desta história movem-se no reino simbólico representado pelos quatro elementos pré-socráticos —fogo, terra, água e ar— onde o corpo é a geografia na qual as paixões e as forças mais misteriosas e sombrias da natureza se desenvolvem. Suas ressonâncias míticas são inúmeras: sua protagonista, Marta, poderia ser a expressão da união cósmica com o Universo, enquanto outra de suas personagens femininas, Antônia, seria a simbolização do imaginário ocidental representada por figuras como a grega Hécate, a hebraica Lilith, a egípcia Ísis ou a Rainha da Noite da Flauta mágica de Mozart. E, neste ponto, gostaria também de destacar a relação íntima de Nélida com a música, que adquire uma importância singular na sua produção literária. Obras como A Força do Destino (1977) ou A Doce Canção de Caetana (1987) não poderiam ser compreendidas sem essa paixão que se remonta à adolescência da própria escritora. A Casa da Paixão, como digo, é a celebração do corpo e da sensualidade. Não se pode esquecer que, no momento em que escrevia este romance, Clarice Lispector, amiga íntima de Nélida, produziu a obra ficcional que se tornou Água Viva, um texto de apenas noventa páginas do seu original —Objeto Gritante— de aproximadamente duzentas.

Depois de A Casa da Paixão empreende um trabalho estranho, mas extremamente interessante: Tebas de meu Coração. Este romance, publicado em 1974, teve uma longa preparação —sete rascunhos— ao longo de cinco anos, entre 1969 e 1973. Tebas de meu Coração é um romance sobrecarregado de personagens, como acontece com o de García Márquez, todos eles de origem simbólica (Maura 1995, p. 70), afirmou a própria escritora. E assim é na verdade. Em suas páginas encontramos um comerciante judeu que faz listas invisíveis e entrega mercadorias que nunca foram solicitadas, uma virgem que dirige um prostíbulo, outra mulher que foi educada para ver além da realidade e acaba inventando uma vida para si mesma, outra que sente tontura ao pisar em terra e acaba morando no telhado de uma casa como uma pomba, um carpinteiro que constrói um barco não para navegar no mar ou em qualquer rio, mas para remar em terra. Nenhum desses personagens atravessa o romance, aparecem como imagens, como vozes diversas semelhantes a ecos, que reproduzem um som ancestral e remoto, uma pulsão primitiva e misteriosa. Vargas Llosa descreverá este romance como uma experiência radical, como um mundo a decifrar, a desvendar, onde o leitor é obrigado a aceitar o que acontece no texto tal como nos é contado, com a sua lógica diferente da nossa, a sua racionalidade diferente da nossa, seu tempo e espaço diferentes dos nossos. (Vargas Llosa 1979, p. 89).

Em 1977, Nélida Piñon publicou A Força do Destino, que já nomeei, onde se homenageia o bel canto num romance inspirado na ópera de Verdi e na peça do Duque de Rivas. Nas palavras da escritora é uma celebração do melodramático”. Ao contrário das duas obras de Verdi e Rivas, neste romance as personagens femininas têm precedência sobre as masculinas. E, de fato, Leonora, a protagonista, é uma mulher ousada, astuta e sedutora, uma autêntica Julieta espanhola”, como a própria Nélida a descreveu.

Neste ponto, é bom destacar a surpreendente quantidade e variedade de personagens femininas criadas pela escritora carioca. A soma é extraordinária. Recordemos a Mariela do Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, Ana de Madeira feita Cruz, Monja de Fundador, Marta de A Casa da Paixão, Eulália, Efigénia, Ofélia ou Filomena, entre muitas outras, de Tebas de meu Coração, Leonora de A Força do Destino e, mais tarde, Esperança, Eulália, Breta e, não menos significativa, Odete de A República dos Sonhos. Este último romance foi editado em 1984, o mesmo ano em que foi publicado Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, e pode ser considerado a “Suma Teológica” de Nélida Piñon, como sua autora o descreveu ao crítico brasileiro Domício Proença.

A República dos Sonhos é uma obra composta por diferentes camadas narrativas. Num primeiro momento, é contada a história de uma família brasileira de emigrantes galegos, onde é priorizada a relação entre o avô Madruga e sua neta Breta, que ficará encarregada de escrever a história. Por outro lado, encontramos também a relação entre Breta e a sua mãe Esperança, juntamente com a história da sua avó Eulália e as suas lembranças cheias de ressonâncias galegas. Dessa forma, a realidade brasileira, no meio da ditadura brasileira, insere-se na de uma Galiza arcaica, referida pelo bisavô Xan, que mergulha suas raízes no passado atávico de uma terra distante, embora plenamente presente no imaginário dos personagens e dos leitores. Há, portanto, pelo menos três planos: o da realidade brasileira sob a ditadura, a relação entre três mulheres de três gerações e suas vicissitudes cotidianas, aos quais devemos acrescentar a presença de Odete, a empregada doméstica, que visualiza o profundo trauma da injustiça coletiva que a sociedade brasileira vive desde as suas origens e, para finalizar, o simbolismo de uma Galiza remota e ancestral. Além desses três planos, há a inevitável referência a Dom Quixote no casal Madruga-Venâncio, onde o primeiro representa um Sancho bem-sucedido, enquanto Venâncio é a imagem do fidalgo pobre, relegado aos seus sonhos, onde se sente imensamente rico. São, portanto, diferentes camadas, ou estratos simbólicos, que se sucedem e se intercalam ao longo do romance como vasos comunicantes.

Muito se poderia dizer deste romance que é, em si, um caleidoscópio de imagens, uma câmara de ecos, pois, em suma, se resume ao esforço e à enorme força que são necessárias para gerar uma obra artística prima, pois só no final se nos revela que Breta é a autora de um livro que deverá escrever e que não é outro senão aquele que temos nas mãos. A República dos Sonhos é, em síntese, a história do ser humano como sonhador de fracassos, pois, como declarou sua autora, vivemos para criar uma certa república que se ajuste à nossa natureza, à nossa concepção das coisas, e envelhecemos sem termos conseguido construí-la. Somos herdeiros de sonhos fracassados. (Maura 1995, p. 72).

Em 1987, foi publicada A Doce Canção de Caetana, fábula em que Nélida regressa ao bel canto, de que a sua autora tanto gostava, e ao folhetim. Depois do enorme esforço envolvido na escrita de uma obra como A República, a escritora precisou descansar em uma história mais leve, onde sua protagonista, Caetana, uma mulher envelhecida, enfrenta seu passado numa cidade do interior brasileiro. Personagens como Polidoro, seu antigo amor, já casado com outra mulher, e um conjunto de prostitutas, acrobatas, policiais, amantes infelizes e mulheres abandonadas à própria sorte vagarão por essa geografia narrativa. Tudo isto, sob a música de fundo de La Traviata verdiana.

Depois de um livro de pequenos textos e aforismos intitulado O Pão de cada Dia, a escritora carioca e galega escreverá outro dos seus grandes romances: Vozes do Deserto, publicado em 2004. Esta obra indaga sobre a tarefa do escritor, como também o fez na República, e sobre o valor das histórias que são contadas. Para este romance, Nélida escolhe a autora de As Mil e Uma Noites, Scherezade: uma mulher que deve ser salva graças às suas histórias, pois o sultão acabará matando-a de madrugada, após satisfazer seus desejos em uma noite de paixões sexuais. No entanto, as histórias que Scherezade conta são de tal qualidade que seduzem o sultão assassino e impedem tanto o seu fim como o das outras mulheres que a sucederão no leito do amor e da morte. É um amálgama de narrativas orais e escritas, transbordada de sensualidade e sedução feminina. E, por outro lado, as histórias que se contam são úteis não só para salvar e compreender a vida, mas também para dar fundamento e entidade a toda uma cultura e a um povo.

Mais de 15 anos se passarão desde a publicação de Vozes do Deserto até a edição de seu último romance. Nesse tempo Nélida não deixou de publicar livros de textos diversos, de contos, memórias, aforismos, reflexões, saudades... Aprendiz de Homero (2006), Coração Andarilho (2009), Livro das Horas (2012) e A Camisa do Marido (2014). Só este último contém narrativas de dimensão média, entre o conto e o relato, em que a crueza dramática e o cenário rural em que as histórias se passam já antecipa o seu último romance, Um Dia chegarei a Sagres, de 2020. Nesta última obra encontramos mais uma vez uma enorme quantidade de referências culturais e humanas, de histórias populares e cultas, de oralidade e literatura, que são comuns na sua autora e são a sua marca de fábrica. Se Os Luisíadas, A Odisseia e A Bíblia são as suas referências intelectuais, a Escola de Sagres, o Infante Dom Enrique o Navegador e a expansão marítima portuguesa do século XV são as históricas. Tudo isso envolto no emaranhado do mundo com seu fardo ancestral, selvagem e desavergonhado. Numa ocasião Nélida disse-me que a vida rural tem uma concentração extraordinária de mitos que se perdem na vida urbana. (Maura 2016, p. 165). Um Dia chegarei a Sagres pode ser considerado, portanto, não como uma despedida de Nélida, mas como a consumação de toda a sua obra literária.

Nesta apresentação quis mostrar a força criativa de uma autora que, para mim, sempre se revelou como uma pessoa próxima, preocupada com os outros, atenta. Tive a oportunidade de conhecê-la durante minha primeira estadia no Brasil, em Fortaleza, em 1982, quando ela me dedicou seu livro A Casa da Paixão. Na época era pouco conhecida na Espanha, mas já se destacava entre os escritores de sua geração por sua voz inegavelmente pessoal e original. Depois a vi em diversas ocasiões: no Rio com Carmen Balcells e Marly de Oliveira, em Toledo onde viajamos uma vez para contemplar a obra de El Greco, na Casa das Conchas de Salamanca, onde conversamos sobre literatura brasileira e amigos escritores comuns, em Valladolid ou Bilbao.... Há muitas memórias e anedotas para recordar: desde uma intimidade académica ou pessoal até conselhos sábios algum dia quando as minhas forças pareciam falhar ou me encontrava numa encruzilhada difícil.

Porém, foi na última fase de sua vida, quando morava no Rio de Janeiro, que nos víamos com mais frequência. Foi então que planejamos transferir sua biblioteca pessoal para o Instituto Cervantes. Essa doação, talvez o ato mais significativo do meu trabalho na cidade do Rio, foi complexa desde o início. Nélida já possuía uma biblioteca com seu nome em Salvador, Bahia, quando doou um total de 3 700 livros à instituição espanhola. Porém, para obter todo o seu acervo bibliográfico —cerca de oito mil volumes— tivemos que mudar o nome da biblioteca, já que a do Rio levava o nome do poeta José García Nieto, ganhador do Prêmio Cervantes em 1996. A biblioteca de Salvador deveria então levar o nome do poeta asturiano e a biblioteca do Rio o de Nélida. Isto foi possível graças à generosidade de Paloma García Nieto, filha do poeta asturiano, que aceitou que ambos os nomes fossem trocados nas respectivas bibliotecas. Feita essa mudança, a escritora brasileira cedeu o restante de sua biblioteca pessoal. Entre os volumes doados estão exemplares raros, edições especiais e limitadas, obras esgotadas, livros em diversas línguas —português, francês, espanhol, galego, inglês— com dedicatórias e marcas de origem. Por se tratar de uma coleção com características muito específicas, foi necessária a formação de uma equipe de catalogadores.

A Biblioteca do Rio de Janeiro já contava com diversos acervos que tratavam das relações entre a Espanha e a América Latina e o Brasil, livros sobre a grande nação americana publicados por autores hispânicos e traduções de obras espanholas e latino-americanas para o português. O Rio de Janeiro é uma das quatro cidades brasileiras especialmente marcadas pela imigração espanhola. Dentro desta coleção, destacam-se a Valeriana dedicada a Juan Valera, diplomata e escritor espanhol que viveu no Rio de Janeiro no final do século XIX, a Sefarad dedicada à cultura sefardita, a Carlota Joaquina de Borbón, rainha consorte de João VI e primeira rainha do Brasil. Porém, a chegada do legado de Nélida Piñon deu um novo perfil à biblioteca, que hoje abriga o acervo pessoal de uma das mais importantes escritoras brasileiras contemporâneas. Neste conjunto podem se encontrar alguns exemplares com dedicatórias muito especiais de ganhadores do Prêmio Nobel como Toni Morrison, Vargas Llosa ou García Márquez, além de autores importantes da literatura brasileira no século XX como Rubem Fonseca, Lucio Cardoso ou Clarice Lispector, entre outros. Além do acervo bibliográfico, Nélida doou objetos de decoração e um retrato seu pintado pela artista catalã Leticia Feduchi.

Porém, a peça que mais apreciei desta doação foi a primeira versão do romance A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa. Como se sabe, este romance, também de impulso épico, é, talvez, a mais importante obra narrativa escrita em espanhol sobre um tema estritamente brasileiro. E na capa do livro tem esta dedicatória: A Euclides da Cunha no outro mundo e, neste mundo, a Nélida Piñon. Essa inscrição é duplamente significativa, pois o enredo do livro foi inspirado no de Euclides, Os Sertões, o autor natural de Cantagalo, no Estado do Rio de Janeiro, a mesma cidade onde nasceu Américo Castro. Por outro lado, Vargas Llosa é um escritor extremamente meticuloso na concreção dos seus romances, e precisava de ajuda para conhecer alguns detalhes específicos da vida dos Jagunços e da sociedade e da história brasileira em geral. Colaboraram neste trabalho além de alguns conterrâneos do personagem histórico António Conselheiro, o escritor baiano Jorge Amado e também a carioca Nélida Piñon. Se Euclides inspirou Vargas Llosa do outro mundo, Nélida soube acrescentar a história o sabor, as fragrâncias e o fedor, a pimenta e o caju. Este exemplar, que pode ser consultado na cidade do Rio de Janeiro, está repleto de anotações e comentários. É, portanto, uma joia bibliográfica.

Mas também há memórias indeléveis da vida de Nélida que também estão guardadas nesta biblioteca. Refiro-me, por exemplo, aos pequenos catálogos de apresentações de balé e sessões de ópera que ocorreram no Theatro Municipal do Rio nas décadas de 1950 e 1960. Nélida, grande amante da dança e do bel canto, como já referi, gostava de preservar aqueles programas que lhe eram dedicados pelos seus intérpretes mais conhecidos. E tudo isto constitui a sua biblioteca pessoal: um conjunto de memórias e peças bibliográficas de extraordinário valor pessoal e documental.

Nélida Piñon permanece viva nos seus livros: aqueles que ela escreveu com louvável cuidado e delicadeza, e aqueles outros que leu e segurou nas mãos enquanto se entregava aos devaneios da sua vida. Com ambos soube dar forma às suas personagens, aquele conjunto de figuras modeladas com palavras que Nélida cinzelou com a mestria aguçada duma escultora da língua portuguesa.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Maura, Antonio (1995). Nélida Piñon, entrevista. El Urogallo. 110/111.

Maura, Antonio (2016). Nélida Piñon. Entrevista. Revista de Estudios Brasileños. 3 (4; primer semestre), 161-170.

Piñon, Nélida (1972). A Casa da Paixão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Piñon, Nélida (1973). Fundador. Buenos Aires: Emecé. Tradución de Ida Vitale.

Piñon, Nélida (1978). Tebas de mi corazón. Madrid: Alfaguara. Tradución de Ángel Crespo.

Piñon, Nélida (1984). A República dos Sonhos. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

Piñon, Nélida (1987). A Doce Canção de Caetana. Rio de Janeiro: Guanabara.

Piñon, Nélida (1989). La fuerza del destino. Barcelona: Versal. Tradución de Mario Merlino.

Piñon, Nélida (2004). Vozes do Deserto. Rio de Janeiro: Record.

Piñon, Nélida (2008). Aprendiz de Homero. Madrid: Alfaguara. Tradución de Montserrat Mira.

Piñon, Nélida (2009). Coração Andarilho. Rio de Janeiro: Record.

Piñon, Nélida (2012). Livro das Horas. Rio de Janeiro: Record.

Piñon, Nélida (2014). A Camisa do Marido. Rio de Janeiro. Record.

Piñon, Nélida (2015). A República dos sonhos. Rio de Janeiro: Record.

Piñon, Nélida (2020). Um Dia Chegarei a Sagres. Rio de Janeiro: Record.

Vargas Llosa, Mario (1979). Presentación de un libro de Nélida Piñon. Revista de Cultura Brasileña. 48.

Vargas Llosa, Mario (2000). La guerra del fin del mundo. Madrid: Alfaguara.