INTRODUÇOM
Neste trabalho começaremos aproximando-nos da obra linguística de Ricardo Carvalho Calero, que agrupamos em três dimensões: conhecedor, construtor e planificador do idioma.
A seguir analisaremos o peso de Carvalho no desenvolvimento da orientaçom lusista ao longo da década de setenta e na fundaçom do próprio movimento reintegracionista no início do seguinte decénio. Segundo a opiniom de um dos principais protagonistas dos primeiros passos desta corrente, no final dos anos 70 este já estava para nascer e provavelmente teria surgido igualmente sem a participaçom de certas figuras hoje vistas como fundamentais nesse processo, como Manuel Rodrigues Lapa ou Ricardo Carvalho Calero1. Porém, Carvalho Calero adquire grande relevância para explicar tanto o momento em que a reintegraçom ortográfica galego-portuguesa começa a ser ponderada seriamente no seio do galeguismo, nos primeiros anos 70, como o forte impulso que recebeu o reintegracionismo já principiada a década de 80.
Percorreremos depois o seu ideário relativo à codificaçom normativa, desde os primeiros anos setenta até os últimos anos da sua vida, nomeadamente através da sua Gramática elemental del gallego común (adiante Gramática), dos diferentes códigos normativos em que vai intervir e dos trabalhos e artigos publicados em jornais e revistas especializadas a partir do ano 1975, muitos reeditados em livro desde 1981.
Finalizaremos avaliando a ascendência carvalhana no reintegracionismo até o presente. No plano teórico, a justificaçom desta ideologia praticamente nom sofreu alterações ou acréscimos desde a morte do seu grande pensador e até se mantém na sua literalidade no momento atual. É verdade que se terá produzido um aumento de peso do argumentário utilitarista em auxílio do clássico protecionista do idioma, mas o certo é que ambos estavam já muito desenvolvidos na obra de Ricardo Carvalho Calero. Ora, como veremos, foi no plano prático e vivencial que se operárom mais transformações. Novos cenários, alguns nem sequer intuídos em vida de Carvalho, permeárom mudanças relativas à frontalidade da mensagem ou ao ritmo e o modo de aplicar o programa lusista.
1. A OBRA LINGUÍSTICA DE CARVALHO CALERO
Carvalho Calero tivo várias fases bibliovitais, permita-se-me o neologismo, em que cultivou praticamente todos os géneros que podia exercitar um autor contemporâneo. A reflexom sobre a língua está de um modo ou de outro presente em quase toda a produçom carvalhana, embora a obra estritamente linguística fosse ganhando importância progressiva a partir do ano 1965, quando começa a sua segunda etapa compostelana, vinculado à Universidade de Santiago. Periodizando a sua evoluçom do ponto de vista da obra linguística, podemos reter três dimensões dele que adquirem desigual importância ao longo da sua vida.
1. 1. O CONHECEDOR DO IDIOMA
Até aos anos 60 temos fundamentalmente o Carvalho conhecedor do idioma. Ele era um profundo admirador de todas as manifestações escritas da língua, estudando praticamente todo o que se escrevia em galego. Já nos primeiros anos 30 acompanhou as tentativas de unificaçom ortográfica (que ele próprio estudará mais tarde) do Seminario de Estudos Galegos e pensa-se que no começo da década seguinte chegou a dar aulas de Filologia galega na prisom de Jaém2 (Dobarro 2019, pp. 72-73). A partir de finais dos anos 40, Carvalho começa a refletir sobre a língua literária (Dobarro 2019, pp. 73-74), ou mais concretamente sobre a relaçom que esta devia manter com as falas populares, tam castelhanizadas, uma preocupaçom que o acompanhará até o final da vida e que em certo modo explica os passos dados posteriormente para o reintegracionismo. Carvalho Calero levou este conhecimento linguístico aos estudos literários (na História da literatura galega contemporânea tem-se muito em conta a língua dos autores e das épocas que estudava), que por sua vez lhe serviam para refletir sobre o modelo em que devia assentar o galego culto.
1. 2. O construtor do idioma
No ano letivo 1965-1966 começa a sua experiência como professor universitário de língua e literatura galegas, que desde 1972 exercerá como primeiro e único Catedrático de Lingüística e Literatura Galega da nossa Universidade. Ao conhecimento vocacional adquirido nas décadas anteriores ele vai acrescentar agora muitas horas de estudo sistemático da língua para converter-se num planificador do corpus do galego, no grande construtor do idioma. Nesta dimensom, cabe destacar três momentos:
Em 1966 publica a Gramática, grande êxito editorial que chegará às sete edições até 1979. Com ela, Carvalho converteu-se na principal referência normativa para o galeguismo de entom, apesar de que nom aspirava a ser a gramática académica definitiva, pois apenas pretendia dar resposta à necessidade de um manual escolar perante o começo do ensino do galego. Uma vez que o grupo dirigente de Galaxia chegou à conclusom de que na Real Academia Galega (RAG) ainda nom havia preparaçom para levar a cabo tal empresa, Carvalho decidiu acometer sozinho a tarefa, com a mesma vocaçom de serviço ao país que o levara a escrever a História da literatura galega contemporânea.
Em 1970 e 1971 publicam-se as Normas ortográficas do idioma galego da RAG (adiante Normas RAG), principalmente da sua autoria, redigidas com certa premura devido à proximidade do ensino do galego (a nova Ley General de Educación, de 1970, permitia pola primeira vez a introduçom das línguas “nativas”) e provavelmente também para tentar alicerçar a autoridade da RAG perante a hipótese certa do surgimento de um novo referente normativizador (que viria representar o Instituto da Língua Galega – ILG – pouco tempo depois) no âmbito universitário.
No ano 1980 saem a lume umas novas Normas ortográficas do idioma galego (adiante Normas de 80) com o selo de Carvalho Calero, presidente da Comisión de Lingüística da Xunta de Galicia. Na teoria, estas normas vigorárom até a publicaçom do Decreto 173/1982 sobre a oficialización da lingua galega, conhecido por Decreto Filgueira (de 17 outubro de 1982), que oficializou as Normas ortográficas e morfolóxicas do idioma galego (ILG-RAG) em 1982. Na prática, a sua vigência foi muito mais efémera, pois em dezembro desse ano 1980 eram ditaminadas outras normas pola Subcomisión de Programación e Textos da Comisión Mixta MEC-Xunta.
Pouco depois, a partir de 1981, ele começa a escrever no que passou a ser conhecido por galego reintegrado, quer dizer, adotando a maioria dos traços fundamentais da ortografia portuguesa.
1. 3. O PLANIFICADOR DO IDIOMA
Em terceiro lugar, toda a reflexom acumulada nas fases anteriores vai-lhe servir para adquirir, na última época, a partir do ano 75, outra dimensom fundamental para a língua: a de planificador do status do idioma, dedicando cada vez mais páginas à história da língua escrita e à política linguística que devia acometer o galego para se reconectar com o seu passado, quer dizer, para recuperar a boa saúde. Em numerosas conferências e colaborações para revistas e jornais pujo em questom a condiçom legal subalterna do galego, criticou o bilinguismo substitutivo ou glossou a importância dos neofalantes. Porém, dedicou ainda mais linhas a reivindicar o vínculo das falas galegas com as outras formas do romanço hispânico ocidental, lamentando a censura normativa que começava a existir. Converteu-se, assim, no principal referente do reintegracionismo linguístico, que defendeu combinando rigor e pegadogia de uma forma que, a meu ver, ainda nom encontrou quem o superasse até a atualidade.
2. DA ORIENTAÇOM REINTEGRACIONISTA (1970-1981) AO MOVIMENTO REINTEGRACIONISTA (1981-)
2. 1. A ORIENTAÇOM REINTEGRACIONISTA (1970-1981)
A progressiva assunçom das teses reintegracionistas por Carvalho Carvalho e outros escritores e escritoras ao longo da década de 70 tem-se sublinhado como uma ruptura com a tradiçom linguística de signo galeguista.
É evidente que ao longo dos anos setenta se produziu uma rápida afirmaçom das duas conceções do galego que ainda temos na atualidade, como idioma autónomo ou como variedade vinculada ao português, mas até os anos 80 é discutível que houvesse um ponto de ruptura protagonizado polo reintegracionismo com a intençom de desvincular-se da produçom escrita anterior.
Nom podemos esquecer que existiam já muitas reflexões prévias (nem sempre conectadas entre si) sobre a necessidade de dar um passo como o proposto, de maneira que também poderíamos chegar à conclusom de a ruptura se ter produzido em sentido contrário, quer dizer, de ter havido uma soluçom de continuidade com o ideal galeguista de convergência programada com o português, como prova muita correspondência entre galeguistas já publicada (Freixeiro 2017, pp. 49-54)3, na qual se detecta uma postura protorreintegracionista bastante secundada nas elites galeguistas das últimas décadas do Franquismo.
O certo é que este desejo de convergência já vinha do galeguismo de pré-guerra (nomeadamente de Johán Vicente Viqueira e Correa Calderón) e também contava com pronunciamentos no pós-guerra (Castelao, Ramón Lorenzo e sobretodo Valentim Paz-Andrade e Guerra da Cal) (Montero 2001), mas renasceu com força no primeiro lustro dos anos setenta devido à proximidade do ensino do galego. A introduçom desta língua na escola ia tornar imprescindível uma norma escrita e ao mesmo tempo faria possível ensinar uma norma diferente da castelhana pola primeira vez na história.
No início dos anos 70 destacárom na formulaçom dessas propostas dous grupos de jovens residentes no estrangeiro: em 1972 o Grupo de Londres, que integravam, entre outros, Carlos Durán e Teresa Barro; e em 1974 o Grupo de Roma, cujo ideólogo era José-Martinho Montero Santalha. No entanto, é um artigo de Manuel Rodrigues Lapa publicado em Grial em 1973, “A recuperação literária do galego”, que costuma ser referido como o acontecimento que acabaria por propiciar a reconexom de muitos e muitas jovens galeguistas com o programa de convergência com o português que afundava as raízes no pré-guerra.
Ora bem, até os primeiros anos da década seguinte, o reintegracionismo caracterizou-se por ser essencialmente teórico e, nos últimos anos 70, por comparecer em publicações periódicas4 e debates normativos (como o que deu por resultado as Bases pra unificación das normas lingüísticas do galego de 1977) tentando empurrar o galeguismo para o uso de um número crescente de traços convergentes com o português (nomeadamente no relativo à acentuaçom e aos grupos cultos). Porém, salvo erro ou omissom, nom temos notícia de nenhuma publicaçom que seguisse umas normas coerentes intencionalmente fora da órbita da ortografia castelhana para convergir com a portuguesa. Tinha havido, sim, ensaios de aproximaçom à grafia portuguesa (Ernesto Guerra da Cal, Valentim Paz-Andrade) e até trabalhos e manuais para orientar a adoçom dessa grafia, como “Unificación ortográfica galego-portuguesa” (Montero 1976) ou as Directrices para a reintegración lingüística galego-portuguesa (Montero 1979) mas respeitavam ainda a ortografia consuetudinária de base castelhana na língua de redaçom, se excetuarmos contributos publicados em Portugal (como o Manifesto para a supervivência da cultura galega, lançado em 1974 na Seara Nova) ou correspondência com autores portugueses, que, da mesma maneira que o livro Estudos galego-portugueses ou os artigos de Manuel Rodrigues Lapa na revista Grial, redigidos a partir da sua própria norma lusitana, nom eram vistos ainda como umha transgressom da ortografia habitual.
2. 2. CARVALHO CALERO NA ORIENTAÇOM REINTEGRACIONISTA
O autor ferrolano sempre destacara por defender um galego culto, assente na tradiçom escrita do idioma, que nom sucumbisse ante a oralidade penetrada de castelhanismos e vulgarismos. Isto é o que o leva a ir tomando cada vez mais em conta o português na Gramática, nomeadamente na quarta ediçom (Carballo 1974), de maneira que Mariño Paz (2002, pp. 83-87) considera que foi entre 1970 e 1974 que se deveu produzir a demorada reflexom que leva Carvalho a suprimir as linhas que se referiam à ortografia castelhana como “más adaptable para el gallego” do que a portuguesa. Monteagudo (2020) ainda precisa mais:
a omisión na Gramática [4ª ed.] dos contundentes argumentos sobre a individualidade do galego verbo do portugués que expuxera no artigo “O galego, unha lingua” [setembro de 1972] pode tomarse como o indicio de que súa vella concepción comezaba a cambalear.
A origem das mudanças talvez se encontre na reflexom exigida pola elaboraçom das Normas da RAG de 1970 e 1971, onde já é possível inferir a prudente vontade de Carvalho e outros dirigentes de Galaxia de impedir um afastamento excessivo do português que poderia vir a causar males maiores no futuro (Freixeiro 2017, pp. 49-54). Assim, embora se trate de umas poucas orientações ortográficas e morfológicas, elas revestem certa importância para a história da língua, ao permitirem intuir já o debate normativo que se aproximava. Quer por convicçom quer por afirmar-se em relaçom ao outro referente, o português ganha força como argumento que opõe os autores das Normas académicas (partidários de nom distanciar-se na medida do possível) e os de Gallego 1, 2 e 3, manuais da autoria do ILG proclives a afirmar a independência do galego quanto ao português (Freixeiro 2017, pp. 56-57). Ainda estamos longe do profundo abismo gerado entre as duas correntes ao longo da década, mas eis que devemos situar os alicerces da evoluçom reintegracionista de Carvalho.
Contudo, houvo que esperar a 1975 para termos o primeiro pronunciamento exclicitamente reintegracionista de Carvalho Calero. Nesse ano publica “Ortografía galega” (La Voz de Galicia 27/VII/1975) e “Galego-portugués ou galego-castelán” (La Voz de Galicia 10/VIII/1975), os primeiros de muitos artigos dele em que já defende de forma mais ou menos aberta que o galego deve adotar na medida do possível uma ortografia convergente com o português.
A seguir viriam outros depoimentos jornalísticos em defesa do reintegracionismo datáveis antes de um anúncio com certa carga de dramatismo que figura no prólogo à sétima e última ediçom da sua Gramática, onde diz que já nom vale a pena fazer mais mudanças na sua Gramática, porque para ela recolher o que sobre a norma do galego pensa nesse momento, ela deveria rescrever-se de novo.
Nesse mesmo ano começam os trabalhos das Normas de 80. Junto ao próprio Carvalho, destacou a participaçom de José Luís Rodríguez e Antón Santamarina, referentes nos anos seguintes das correntes reintegracionista e autonomista respetivamente. Partindo de um compromisso das duas sensibilidades (a reintegracionista e a autonomista), assentavam na ortografia castelhana e na prática assumiam o galego como língua independente do português, mas deixavam a porta aberta a avançar para uma confluência com esta língua em muitas duplas opções e na própria ideologia linguística que constantemente transparecia na redaçom das mesmas, o que lhes frustra o percurso praticamente desde o início.
2. 3. O MOVIMENTO REINTEGRACIONISTA (1981-)
O falhanço das Normas de 80 vai estimular dous acontecimentos fulcrais para entender a transformaçom da orientaçom reintegracionista dos anos 70 num movimento social ao longo da década de 1980. Por um lado, em 1981 publicou-se o livro de Carvalho Calero Problemas da língua galega (adiante Problemas), o primeiro da história no que se conhece por galego reintegrado. Por outro, o debate alcançou a rede associativa. A constituiçom da Associação de Amizade Galiza-Portugal (1980) e a crescente evoluçom pró-reintegracionista da Asociación Sócio-Pedagóxica Galega (AS-PG), que em 1982 chega a mudar o seu nome para Asociaçóm Sócio-Pedagógica Galega, antecipam o processo de fundaçom da Associaçom Galega da Língua (AGAL), entre maio e outubro de 1981, momento em que podemos datar o nascimento do reintegracionismo organizado.
A seguir aos Problemas, o novo cenário ainda tardou em clarificar-se dous anos, ao longo dos quais se acabará produzindo a definitiva fixaçom das três normativas mais seguidas nas seguintes décadas. A AS-PG reedita em 1982 as suas anteriores Orientacións para a escrita do noso idioma (1979, 1980) (adiante Orientacións) no sentido reintegracionista (Orientaçóns para a escrita do nosso idioma, junto com a unidade didáctica Explicaçóns sobre algúns pontos das Orientaçóns para a escrita do nosso idioma), admitindo algumas grafias emblemáticas do português, o qual provocará uma cisom dos setores mais interessados em inserir a AS-PG na órbita de uma atividade política mais ampla. De facto, as anteriores Orientacións (1979 e 1980), assentes nos usos normativos da Cátedra de Linguística e Literatura Galega da USC (ocupada ainda por Carvalho Calero), tinham como ponto de partida e chegada o nacionalismo e foram a origem dos “mínimos reintegracionistas”, que também contavam com outros precedentes como Unificación ortográfica galego-portuguesa (Montero 1976) ou as próprias Normas de 80.
No mesmo ano 1982, o Decreto Filgueira sancionava as Normas ortográficas e morfolóxicas do idioma galego (ILG-RAG), que moderavam as já moderadas concesões ao lusismo que se verificaram nas Bases de 1977. A norma “isolacionista” tornava-se oficial. Um ano mais tarde, em 1983, a AGAL publicava, por fim, o Estudo crítico das normas ortográficas e morfolóxicas do idioma galego (ILG-RAG) que dava ao reintegracionismo uma primeira norma escrita a contar com o aval da sua associaçom de referência, que passou a ser vista como a para-academia reintegracionista. Estabilizava-se assim a prática escrita inaugurada por Carvalho Calero nos Problemas, que por sua vez ensaiava muitas das propostas realizadas antes por José-Martinho Montero nas suas Directrices (Montero 1979).
2. 4. CARVALHO NO MOVIMENTO REINTEGRACIONISTA
Sem ser o seu único inspirador5, Carvalho convertia-se logo no principal pensador do novo movimento, no seu mais prestigioso divulgador e, também, no primeiro que levou à prática os seus postulados ortográficos num livro, Problemas da língua galega, apresentado em Santiago de Compostela no dia 9 de junho de 1981. Utilizando terminologia carvalhana, 1981 é o annus mirabilis do reintegracionismo galego: o ano em que os Problemas representam o passo à frente, a ruptura com a tradiçom ortográfica moderna assente no castelhano e o ano em que a AGAL, coletivo em que o professor exerceu grande influência até a sua morte, representa o surgimento do movimento reintegracionista organizado.
Quanto ao carácter fundacional dos Problemas, Carvalho Calero nom deu a este facto qualquer importância no evento de apresentaçom, exibindo a sua habitual modéstia e inserindo o seu livro numa tradiçom de muitos escritores actuais, que propugnam, e praticam em diferente medida, uma coordinaçom gráfica entre as distintas normas literárias do sistema hispánico ocidental
(Carvalho 1983, p. 73). Também tentou dar carácter circunstancial à novidade ortográfica dizendo que se tratava de artigos adaptados à grafia com que o leitor português está familiarizado
(1983, p. 73), uma vez que o livro vinha a lume num prelo português. Lapa, por sua vez, afirmava no mesmo lançamento:
Felizmente, a Junta da Galiza adoptou um criterio liberal para as normas ortográficas, de modo que foi possível chegar a um acordo entre a ortografia galega e a luso-brasileira. O padrão ortográfico da “Noroeste” é pois um ajustamento entre as Normas da Junta e as “Directrizes” do Pe. Montero Santalla (Lapa 1981).
Provavelmente, ambos tentavam justificar assim que o livro decidisse avançar sem esperar à consolidaçom de umas Normas de 80 que, na verdade, já sabiam que nom tinham possibilidade nenhuma de aglutinar em torno de si as duas visões da língua que chegaram ao princípio da década completamente conformadas. Com o seu seguinte livro, Da fala e da escrita (1983), Carvalho viria confirmar que a norma usada em Problemas nom fora pontual.
Em relaçom à fundaçom da AGAL, na qual participaram muitos e muitas discípulas do professor (Henríquez 1992, pp. 44-45), teria sido determinante a passagem para a condiçom de jubilado do professor Carvalho Calero
(Labandeira 1981). Com ela, a orientaçom reintegracionista perdia a influência académica de um catedrático, mas o movimento ganhava um referente indiscutível na sociedade.
Carvalho participa em muitas iniciativas da AGAL nos últimos nove anos da sua vida, principalmente escrevendo na revista Agália e conferenciando em congressos e atividades. Segundo a presidenta deste organismo entre 1982 e 2001, o labor de assessoramento por meio de cartas e conversas também foi constante (Henríquez 1992, pp. 25-60).
3. A OBRA REINTEGRACIONISTA DE CARVALHO
A evoluçom do escritor ferrolano para o reintegracionismo é uma das mais alicerçadas teoricamente do primeiro grupo de reintegracionistas. Os seus passos estám sempre profusamente justificados nas novas circunstâncias que deve encarar o idioma, o que, somado ao grande prestígio como filólogo que já tinha, lhe deu logo uma enorme ascendência no reintegracionismo, tanto no tipo de ativismo dos primeiros anos como no argumentário que este movimento continua a usar 30 anos depois, às vezes recuperado literalmente da obra de Carvalho Calero.
O seu ideário reintegracionista está desenvolvido num importante número de textos compilados, junto com contributos doutro teor, em quatro livros. Através deles é possível analisar a evoluçom desta parte do seu pensamento, dado que todos contêm principalmente, ainda que nom exclusivamente, trabalhos dos anos imediatamente anteriores:
Obra reintegracionista de Carvalho Calero | |
Problemas da língua galega, 1981 | Contributos escritos entre 1977 e 1978 |
Da fala e da escrita, 1983 | Contributos escritos entre 1979 e 1982 |
Letras galegas, 1984 | Contributos escritos entre 1983 e 1984 |
Do galego e da Galiza, 1990 | Contributos escritos entre 1984 e 1987, ediçom póstuma |
Já nos referimos ao carácter fundacional dos Problemas, que recolhe, junto com outros trabalhos filológicos, alguns dos primeiros escritos favoráveis ao reintegracionismo de Carvalho Calero entre os anos 1977 e 1979.
Da fala e da escrita foi publicado só dous anos depois por Galiza Editora, da Asociaçóm Sócio-Pedagógica Galega. Inclui conferências, estudos e artigos maioritariamente posteriores à publicaçom dos Problemas. Este é o livro que mais amplamente recolhe o ideário linguístico do autor e onde mais claramente se vê o carácter de Carvalho como grande pensador do reintegracionismo, uma vez que proporciona a esta corrente argumentos de todo o tipo, distanciando-se do simples propagandismo que o momento do debate exigia nos primeiros anos 80.
Em Letras galegas (editado pola AGAL) abordam-se temas literários e filológicos mais diversos que nos outros volumes referidos, mas consta de três contributos de 1983 e um de 1984 em que Carvalho Calero se debruça diretamente sobre o assunto em questom.
Do galego e da Galiza foi publicado pola editora Sotelo Blanco postumamente, embora fosse Carvalho Calero quem preparasse a ediçom (que saiu do prelo pouco tempo depois de ele morrer). Recolhe, na primeira parte, textos que tratam principalmente sobre planificaçom linguística escritos entre 1984 e 1987. Em relaçom ao reintegracionismo, este livro recolhe o último Carvalho Calero, o mais claro quanto ao ponto final do seu gradualismo normativo e o mais categórico denunciando a jugulaçom administrativa da dissidência ortográfica
.
A reflexom reintegracionista de Carvalho nom acaba nestes volumes. Há ainda mais trabalhos de Carvalho dispersos em jornais, atas e revistas especializadas como Verba ou Agália e temos também um grande número de artigos sobre a questom (entre outras) selecionados por ele mesmo para o volume Umha voz na Galiza (Sotelo Blanco), uma espécie de epílogo à sua atividade jornalística em que o autor deixa constância da natural evoluçom do seu pensamento através de textos que entom ainda nom tinham sido publicados em livro e que, exceto no relativo à correçom de gralhas, nom alterou para este volume.
4. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO REINTEGRACIONISMO CARVALHANO
4. 1. FILOLOGISMO
Em relaçom a outros intelectuais do reintegracionismo, que iriam mostrar maior inclinaçom por áreas específicas, nomeadamente a sociolinguística, Carvalho é o grande filólogo desta corrente num sentido abrangente, sem por isso deixar de tratar a questom também doutros pontos de vista (direito, filosofia). Ele forneceu ao lusismo um corpus teórico elaborado a partir de múltiplas abordagens filológicas: linguística histórica, linguística normativa, geolinguística, didática das línguas, gramática, lexicografia, toponímia etc.
A principal linha argumental que seguem os trabalhos que dedicou à problemática normativa é a análise do estado atual da língua e da literatura galegas partindo de uma visom histórica das mesmas para, a seguir, propor políticas que intervenham nesse estado, que acha crítico. Polas palavras do autor no prefácio de Problemas, debate-se o tema da essência e a existência do galego, procurando no conhecimento do que é aquela, orientaçom para sugerir o que deve ser esta
(Carvalho 1981, p. 1).
4. 2. COMPROMISSO
O compromisso como forma de envolvimento de Carvalho Calero nos diferentes âmbitos da vida em que tivo participaçom tem sido destacado frequentemente polas pessoas mais chegadas ao autor. Compromisso com a família, com o galeguismo, com a República, com a língua, com a Galiza etc. Também me parece esta uma das principais características do seu reintegracionismo. Dom Ricardo sente-se mais um numa causa em que acredita firmemente. Como se fosse alheio à importância da sua figura para o movimento cultural que estava a nascer, recorre uma e outra vez à autoridade de galeguistas que o precedêrom: O galego, como dizia Castelao, é um idioma extenso e útil
(Carvalho 1984, p. 34). Ele nem se acha nem pretende ser vanguarda e, no seio do próprio movimento, ainda a custo de ser considerado pouco adiantado, está sempre mais preocupado polo seu avanço em conjunto e porque a nova proposta dialogue com o resto do galeguismo que em dar passos à frente, gráficos ou retóricos, que quebrem os vasos comunicantes com a sociedade.
4. 3. LIBERALISMO
Se tivéssemos que definir o elemento discursivo unificador da obra linguística de Carvalho Calero, dos primórdios à época reintegracionista, acima da defesa de uma língua mais assente na história escrita ou no português que caracteriza diferentes momentos da mesma, este seria a prudência, a tolerância com outras posturas e até certo liberalismo normativo, que ele próprio menciona no prólogo da última ediçom da sua Gramática
Aunque en materia de normatividad continuamos profesando nuestro viejo liberalismo, la consciencia de que el gallego, como idioma hispánico occidental no debe volver las espaldas a las otras formas del romance atlántico, nos aconsejaría hoy en algunos casos una distribución distinta (Carvalho 1979, p. 12).
Neste sentido, a Gramática vai ao encontro de opiniões manifestadas anteriormente, como o informe que elabora para a RAG em maio de 1962, recolhido no Epistolario a Fernández del Riego (2006, apud. Dobarro 2019, p. 85), que demonstra que Carvalho tinha uma longa tradiçom de reflexom sobre como devia proceder-se em relaçom à orientaçom normativa da língua:
Un “decreto de unificación” non sería obedecido, pois as Academias non impoñen os idiomas ao pobo e aos escritores.[...] se o estado actual do galego impede unha gramática normativa, permite unha gramática descritiva. (Dobarro 2019, p. 85).
A meu ver, este liberalismo normativo de 1965 acompanhará Carvalho até o final da vida e mesmo antecipa, por mais contraditório que pareça, a posiçom lusista que tomaria uma década mais tarde. Como se sabe, o autor da Gramática renunciava a uma plena identificaçom da língua literária e da oral, que deviam respirar autonomamente por cumprirem funções diferentes. Atrás desta postura encontrava-se o temor de que a castelhanizaçom e dispersom das falas galegas pudessem desfigurar a língua escrita. O lusismo apresentou-se a Carvalho como a melhor forma de resolver a sempre conflituosa relaçom entre a língua escrita e a falada, cada vez mais penetrada de castelhanismos. A melhor forma de filtrar naturalmente na língua escrita os castelhanismos que invadiam a língua oral evitando uma intervençom normativa policíaca:
Derrogarám-se as disposiçons e abolirám-se as práticas que eventualmente se revelassem contrárias ao princípio da liberdade legítima, e orientadas a forçar uma soluçom rígida e coercitiva dos problemas presentes, ou a penalizar de modo explícito ou encoberto a conduta lingüística que discrepasse de um modelo de comportamento inflexível (Carvalho 1990, p. 85).
Já em relaçom à outra língua oficial da Galiza, apesar de saber que a normalizaçom linguística dificilmente se compatibilizava com o bilinguismo social, Carvalho Calero sempre fijo questom de defender certo espaço para o castelhano na Galiza, como um recurso que nom podíamos desprezar. Para ele, na sociedade devia prevalecer certo unilinguismo ao estilo do que acontecia na Suíça ou na Bélgica, mas, para lá chegarmos, deviam respeitar-se escrupulosamente os direitos dos falantes de castelhano e o conhecimento do espanhol pola nossa populaçom nom devia ser banido (Forneiro 1991).
4. 4. GALEGUISMO
O autor ferrolano nunca deixará de defender certa autonomia do galego no âmbito lusófono, sobretudo na oralidade, ainda que mostrando-se cada vez mais claro em relaçom à necessidade de uma ortografia o mais unificada possível. Assim, Da fala e da escrita contém trechos que parecem dar muita margem a essa autonomia, quando diz que alguma forma de colaboraçom galego-portuguesa parece necessária no terreno lingüístico
ou menciona o razoável reingresso na comunidade lingüística à que realmente pertence o galego
(Carvalho 1983, p. 27). Porém, Do galego e da Galiza, que compila artigos posteriores, contém excertos mais categóricos em relaçom à plena incorporaçom do galego ao romance ocidental (em paralelo à relaçom que o espanhol normativo mantém com as suas falas), ainda que sem implicar a perda da autonomia normativa. O parágrafo que me parece mais claro neste sentido é o seguinte:
A meu juízo, esta reintegraçom dentro do seu sistema originário do galego, nom tem por que supor a substituiçom das suas formas peculiares polas do português normativo. Hai dentro do hispânico ocidental muitas falas, e nom se trata de promover uma substituiçom de uma delas por outra com mais prestígio oficial. Sem prejuízo de que a osmose natural exerça o seu imprevisível papel, devemos partir de que a unidade lingüística galego-portuguesa nom supom uniformidade burocrática. Temos traços fonológicos e morfológicos que nom podem ser reprimidos, a reserva do seu destino no livre jogo cultural. Mas na medida do possível, e sempre que por circunstâncias socio-historicas nom se ponha em perigo a autenticidade das realizaçons, uma ortografia coordenada deve cobrir a representaçom escrita da língua comum, como ocorre no caso das demais línguas de cultura (Carvalho 1990, pp. 44-45).
4. 5. GRADUALISMO
Para atingir essa ortografia coordenada, explicava, existiriam duas possibilidades: Poderá haver quem opine que, fixada a meta, devemos atingi-la de um pulo, sem estabelecer etapas, e outros que creiam que estas som necessárias ou convenientes
(Carvalho 1981, p. 19).
Carvalho Calero era mais proclive à segunda, a gradualista, que definiu pormenorizadamente em O problema ortográfico (1985), mas que aparece mencionada em muitos outros trabalhos. Consciente das dificuldades que entranhava a aplicaçom de uma política reintegracionista numa sociedade alfabetizada em castelhano e sem conexom sociopolítica com o mundo de língua portuguesa, via mais praticável uma planificaçom que transitasse, segundo os contextos, de umas poucas adaptações ortográficas a uma integraçom suficiente no âmbito românico ocidental, quer dizer, que transitasse dos “mínimos” aos “máximos”.
5. NOVOS CENÁRIOS PÓS-CARVALHO
A meu ver, nom há soluçom de continuidade entre o reintegracionismo do século XX e do XXI. E é que para além do ensaio de diferentes estratégias para fazer-se compreender na sociedade, a essência da sua missom, esbater no possível os limites entre galego e português, permaneceu inalterada. É prova disso que os principais pensadores do primeiro reintegracionismo continuam vinculados ao movimento na atualidade: José-Martinho Montero Santalha, José Luís Rodríguez, Isaac Alonso Estraviz e Carlos Durão som quatro exemplos bem eloquentes.
Ora bem, diferentes acontecimentos posteriores à morte de Carvalho Calero alteraram quer o público recetor das mensagens reintegracionistas quer o ritmo de aplicaçom deste ideário que o próprio movimento vê possível levar a cabo. Assim, na atualidade, tanto nos usos linguísticos, muito mais próximos do português padrão em conjunto, quanto nos discursos públicos lançados por este movimento, há algumas diferenças em relaçom aos que podia emitir o autor. Estas diferenças apreciam-se num aumento de peso dos argumentos utilitaristas em detrimento dos historicistas para reforço dos clássicos protecionistas, mas, sobretodo, como veremos, na progressiva perda de força da estratégia gradualista.
5. 1. A COMUNICAÇOM ON-LINE
A apariçom da Internet mudou radicalmente as possibilidades de expansom do ideário reintegracionista, ao tornar possível a autonomia dos seus utentes. O português, que até entom era algo sumamente distante para a maioria das pessoas galegas, fica ao alcance de um click, e as portas da ediçom de livros ou realizaçom de atividades, antes sistematicamente fechadas polo galeguismo hegemónico nas instituições, começam a abrir-se timidamente.
5. 2. REORDENAÇOM DO AUTONOMISMO
No ano 2003, após um acordo entre a RAG e as três universidades galegas, o mundo sociocultural e político nacionalista deixa de usar a já histórica “norma de mínimos”, que tinha sido postulada como ponto de partida para o gradualismo que propunha Carvalho Calero. Esta norma tinha origem, de facto, no próprio pensador reintegracionista, pois as Orientacións (1979, 1980) da AS-PG em que aparecem recolhidas pola primeira vez bebiam fundamentalmente das normas usadas pola Cátedra de Lingüística e Literatura Galega de que era titular o professor. A norma oficial, que passava a admitir algumas soluções emblemáticas para o lusismo, ampliava assim a base de utentes através de um acordo que, no entanto, nom abalou o reintegracionismo.
5. 3. REORDENAÇOM DO REINTEGRACIONISMO
Após a morte de Carvalho Calero, ao longo dos anos 90 produz-se uma relativa estagnação da associação [AGAL], fenómeno paralelo à expansão do reintegracionismo noutros âmbitos sociais
(Peres 2014, pp. 124-125). Nesses anos irá perdendo vigor a estratégia da organizaçom de Congressos, em parte devido ao falecimento nom só de Carvalho Calero, mas também de outros vultos da filologia românica e luso-brasileira que lhes costumavam prestar apoio, como Joan Coromines, Guerra da Cal, Celso Cunha ou Rodrigues Lapa. Estes e outros importantes linguistas davam sentido a uma estratégia de acumulaçom de prestígio académico, ao qual também contribuíam publicações como Agália, na hora de apresentar-se perante a sociedade como academia alternativa da língua.
Porém, a progressiva consolidaçom do galego oficial irá debilitar o sentido destas demonstrações de força. O reintegracionismo começava a gerar uma rede associativa e comunicativa muito minoritária socialmente mas provavelmente a mais dinâmica do movimento normalizador. Em 2001, sob a presidência de Bernardo Penabade, a AGAL mudava consideravelmente o rumo para converter-se numa associaçom menos filológica, mais transversal política e socialmente.
5. 4. A META DA PLENA INTEGRAÇOM NO PORTUGUÊS, MAIS CLARA
As condições em que trabalha o reintegracionismo mudaram significativamente no que diz respeito à consideraçom que Portugal e o Brasil recebem na Galiza. Em poucas décadas, a integraçom europeia, o desenvolvimento turístico e o advento da Internet provocárom a diversificaçom de contactos físicos e virtuais entre as populações europeias e mundiais. Estas novas circunstâncias, se nom provocárom, polo menos facilitárom que o velho argumentário reintegracionista, sempre comedido na hora de expressar o seu desejo de convergir quanto possível no português escrito, acabasse por ceder mais espaço a um uso descomplexado de termos como “português”, “ortografia portuguesa”, “Lusofonia” (em convívio com outros menos rupturistas como “galego”, “galego internacional”, “grafia histórica/etimológica”, “galego-português”). Nesta evoluçom, a conhecida preferência de Carvalho por denominações da romanística menéndez-pidaliana para referir-se à língua comum como “romanço ibérico ocidental” caem em desuso.
Este avanço na identificaçom com a língua portuguesa nua e crua também tivo o seu reflexo ortográfico. Entre o ano 1986 e 1990 (na sequência da assinatura dos Acordos ortográficos da língua portuguesa de Rio de Janeiro e Lisboa respetivamente, que contárom com observaçom galega) começa a crescer no seio do movimento reintegracionista a tendência partidária de dar passos ainda mais decididos para a unidade total da língua escrita. Muitos reintegracionistas vam adotar como próprios todos os traços gráficos que o português padrão usa para a representaçom da nasalidade, incluído o til nas terminações em que a AGAL usava tradicionalmente -ám e -om e também o <m> para representar a nasal velar nos indefinidos femininos. As pessoas partidárias desta corrente, reunidas em torno da Associação de Amizade Galiza-Portugal e das Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, acabarám por lançar em 2008 a Academia Galega da Língua Portuguesa, uma velha ideia de Ricardo Carvalho Calero. Os argumentos mais potentes para avançar por esta via eram de teor prático, pois nom se viam as vantagens de fazer o esforço de acometer mudanças na ortografia do galego se nom era para esta ficar completamente inserida na Lusofonia.
Pola sua prática gráfica, vê-se que Carvalho se mantivo prudente na hora de realizar mudanças estratégicas derivadas desses Acordos, mas o facto de ter falecido meses antes da assinatura do Acordo de 90 (e dezanove anos antes da sua entrada em vigor) nom nos permite tirar conclusões definitivas quanto a isto.
Na atualidade, a maioria do reintegracionismo assume a plena integraçom ortográfica como possibilidade, mas as resistências a esse passo foram grandes ao longo de três décadas, por razões quer pedagógicas (temor às dificuldade de socializaçom) quer políticas (interesse em manter certas peculiaridades gráficas dentro do espaço lusófono). A AGAL começou por admitir a possibilidade do uso do til etimológico em 1989 e, afinal, desde 2016, também a do nom-etimológico (capitão, coração) e o indefinido uma, sem por isso preterir as clássicas alternativas galegas ao uso deste sinal auxiliar da escrita (capitám, coraçom, umha).
A aprovaçom por unanimidade no Parlamento Galego da Lei Paz Andrade para o aproveitamento da língua portuguesa dos vínculos com a Lusofonia, em 2014, reforçou ainda mais estas novas vias de trabalho, tendentes a considerar que as potencialidades do reintegracionismo estám mais em tirar proveito da plena integraçom na Lusofonia que em impor-se no debate filológico galego.
6. EM JEITO DE CONCLUSOM: DO GRADUALISMO AO BINORMATIVISMO
Para Carvalho Calero, a retificaçom da ortografia teria de realizar-se gradualmente
(Carvalho 1990, p. 36), mas esse gradualismo nom lhe impedia enxergar já o ponto final do processo:
Os reintegacionistas propugnam, pois, a assunçom gradual da nossa ortografia histórica, entendendo-se como tal, com certeza, nom só a que se usava cando o castelhano deslocou o galego como língua escrita nas províncias espanholas, mas também a que continuou desenvolvendo-se além Minho (Carvalho 1990, p. 32).
De maneira que, no fundo, esta estratégia só seria possível de aplicar após derrotada a ideologia autonomista, pois só assim seria factível chegar a um consenso sobre as etapas a percorrer.
As condições atuais do debate afastam a possibilidade de uma transiçom por etapas. Por um lado, a norma autonomista, junto com a ideologia que a sustenta, está mais consolidada, e até reforçada, pola desapariçom da normativa de mínimos que até 2003 a pretendia pôr em causa. Ninguém sonha agora com fazê-la desaparecer, de maneira que o velho debate de se é preciso acometer antes a normalizaçom ou a normativizaçom carece de sentido. Por outro, embora pareça contraditório com o anterior, o reintegracionismo cresce, vendo-se capaz de caminhar autonomamente, uma vez que a conexom dos galegos e galegas com o mundo lusófono se foi facilitando, talvez à mesma velocidade que se foi fragilizando a transmissom espontânea da língua da Galiza. As novas adesões ao movimento diversificárom-se, extravasando as vias associativas, o que provoca que o português padrão seja assumido com mais desembaraço entre os novos utilizadores e utilizadoras, muitas vezes sem contradiçom com permanecerem utentes da norma oficial em muitos âmbitos da sua vida.
Por isso, o objetivo de começar um processo de aproximaçom gradual do português após derrotada a ideologia autonomista perdeu peso em relaçom a outros que propõem caminhar em paralelo. Isto nom quer dizer que no reintegracionismo se deixasse de acreditar na conveniência de a norma do galego oficial continuar a reduzir a distância, por exemplo lexical ou sintática, com o português, mas nom se vê possível uma evoluçom gradual daquela até a sua prática substituiçom por umas normas de orientaçom reintegracionista.
E eis que surge, no inevitável percurso em paralelo que descreverám ambas as orientações linguísticas, um novo programa: o binormativismo. Ele impugna o gradualismo de Carvalho, mas preserva o espírito liberal do mestre. Reivindica certa oficialidade para os dous modelos gráficos em concorrência e até respeito mútuo, tentando otimizar assim os esforços em prol da normalizaçom do galego realizados polos e polas utentes de ambas as normas. Trata-se de impedir, sem ir mais longe, que o principal romance de Carvalho Calero, Scórpio, seja retirado da plataforma de novidades editoriais da Xunta por nom estar na norma oficial, como aconteceu recentemente. Mas nom só. O binormativismo parte da convicçom de que ambos os modelos podem prestar-se ajuda recíproca para ficarem mais fortes perante os desafios da globalizaçom. O português da Galiza necessita do convívio com um galego autónomo vigoroso para nutrir-se dos particularismos que Portugal e Brasil já nom lhe podem fornecer. E o galego autónomo precisa de compartilhar espaço com o português da Galiza para ganhar projeçom na Lusofonia e, mais importante talvez, estabilidade interna. Dito por outras palavras, o binormativismo facilitaria a livre circulaçom de alouminhos em português e brincares em galego, de pronomes de solidariedade em português e infinitivos flexionados em galego.